domingo, 18 de fevereiro de 2007
sábado, 17 de fevereiro de 2007
BARCO DE PAPEL
Como se a terra corresse inteirinha atrás do rio,
a seguir serras e vales num enorme caminhar,
eu vejo a imensa saudade escorrer-se sobre mim.
Sei de onde ela partiu. Não sei onde vai chegar.
Como se o rio voltasse todo ao encontro da terra,
e, num abraço apertado, inundasse a solidão,
eu sinto a minha saudade, penitência dos aflitos,
desesperar-se. E, aos gritos, mergulhar na imensidão.
Se eu fosse a terra, eu cumpria meu destino de ser leito.
Se eu fosse o rio, eu seguia meu destino de ser mar.
Eu não sou terra nem rio. Sou um barco de papel!
Onde vai, pois, um barquinho de papel a navegar?
Katia Drummond
Em inverno português. Sintra, 2007.
HANNAH
[Para a nova netinha, ainda bem guardadinha no casulo.]
Eis que surge no outono a primavera.
E faz-se nela a vida, ainda semente.
A floração do sonho e da quimera,
a brotar em solo fértil, corpo ardente.
A natureza-mãe sempre quisera
recriar do fértil sémen de um vivente,
a deusa angelical que sempre houvera.
Eis que desce do céu uma estrelinha.
Prenúncio de alegria e de doçura.
A viajar no tempo, qual fadinha,
até chegar na terra da ventura.
E ao crescer, a alegre sementinha
vai preenchendo a casa de candura.
Como o faz à criança a bonequinha.
Eis que cresce no ventre, protegida,
o fruto do amor em movimento.
A revelar, na força em si contida,
a evolução do ser. Novo rebento!
A engendrar, na transição vivida,
o renascer do próprio nascimento.
Como se fosse eu, de volta à vida!
Kátia Drummond
Num outono português. Sintra, 2006.
ENQUANTO ANA TERRA NÃO VEM.
[Para Ana Terra Drummond. Com amor de vó-peregrina.]
Já vivi a intensidade exaustiva dos retiros.
Recitei todas as preces e tomei todos os votos.
Jejuei em busca de sanar as dores deste mundo.
Não matei, não roubei, não menti.
Cometi virtudes, purifiquei o corpo e a alma.
Realizei sonhos e multipliquei amores.
Convivi com todos os seres vivos e mortos.
Só não amei a Deus sobre todas as coisas.
Agora, resta-me estirar a rede na varanda,
acender a lua, deitar e sonhar.
Enquanto Ana Terra não acende o sol.
Katia Drummond.
Em primavera portuguesa. Sintra, 2005.
domingo, 11 de fevereiro de 2007
LUMINA QUA SERA TAMEN
Trago-vos uma bandeja de porcelana azul,
com húmus, líquens e musgos.
Saboreeis, pois, prazerosamente a floresta.
As abelhas deitarão o mel sobre vossos corpos.
Lépidos pirilampos alumiarão, de raios de ouro,
vossos entristecidos e dormentes corações.
Vossos cabelos resplandecerão em luz.
O brilho dos vossos olhos iluminarão o breu.
E renascereis em paz!
Katia Drummond.
Em primavera portuguesa. Monte Estoril, 2005.
ANJO À-TOA
Não busque no meu corpo a carne, a chama.
Nem veja no meu rosto uma consagração qualquer.
Eu sei que sou um anjo à-toa nesse mundo.
Um tiro certo, um poço fundo,
um precipício aberto, uma mulher.
O que é que eu faço dessa sensação estranha,
que me persegue e me apanha,
e me vira pelo avesso,
que não tem fim nem começo
e me faz o que bem quer?
O que é que eu faço dessa sensação perdida,
desvairada, enlouquecida,
displicente, amargurada,
se o meu sorriso anda tão comprometido
e se a gente passa e pensa,
sem recompensa, sem nada?
Eu quero ser seu anjo,
à-toa e vagabundo,
seu mistério o mais profundo
e você vem quando quiser.
Se você quer morrer de amor,
morrer de vício,
eu quero ser seu precipício,
seu amor, sua mulher.
• Poema: Kátia Drummond
• Música: Tamir Drummond
• Foto: Damir Frkovic
• Arranjo, voz e violão: Sávio Drummond
Link:
CARTA A BRISA
[Para Brisa Drummond Sjoëlin. Com amor de mãe-peregrina]
Querida filha Brisa,
A primavera portuguesa já chegou!
Infelizmente, ela veio bem antes de você.
Mas... não faz mal não.
Enquanto você não vem,
eu cá estou a regar todas as flores.
E quando as flores murcharem,
eu as colherei sem machucá-las.
Delicada e ternamente as soprarei,
e as lançarei nas asas do vento.
E quando o vento voar,
elas brotarão nas brancas nuvens.
Fique sempre atenta às nuvens, viu?
Vez em quando, favor olhar pro o céu.
E quando o céu amanhecer todo florido,
lembre que foi sua mãe, daqui de Portugal,
quem enviou essas flores pra você.
Com algumas delas, enfeite os cabelos.
Com outras, perfume seu corpo.
Quando as nuvens desvanecerem-se,
continue lembrando de mim.
Mesmo que o sol esteja mais quente
e que o céu esteja todo azul.
Não espere até a próxima primavera
para que nos encontremos.
Pois cá estou morrendo de saudades,
e a primavera pode não voltar.
Katia Drummond
Em primavera portuguesa. Sintra, 2005.
DENTRO DE MIM
O prazer de ter-te assim dentro de mim
É mais que a alegria de viver
É mais que ver o sol parindo o dia
dentro da lua a desaparecer.
O prazer de ter-te assim dentro de mim
É mais que o vôo livre do tiê
Mais que o casulo, enfim, desabrochando
Pra borboleta pousar em você.
O prazer de ter-te assim dentro de mim
É mais que a chegada em novas terras
Bem mais que receber um abraço amigo
Após as noites de longas esperas.
O prazer de ter-te assim dentro de mim
É mais que o frescor da adolescência
É muito mais que o doce do teu mel
Após gozar o amor em sua essência.
Por isso, eu eternizo o ato absoluto
Que une num só corpo o nosso ser
E faço a impermanência do minuto
virar eternidade até morrer.
Kátia Drummond.
Em primavera portuguesa. Sintra, 2005.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007
RITUAL SAGRADO DE VIDA E MORTE.
Aqui e alí, eu continuo a nascer.
E vos convido a participar desse sagrado ritual,
onde efêmera e impermanentemente sou lua e sol.
E em que oníricas fadas rodopiam evanescentes.
Aqui não tem tempo. Nem muros de pedras.
Trazeis libertas as almas e serenos os corações.
E alguns perfumados incensos e raminhos de alecrim.
Se ao meu lado ficarem, untarei vossos corpos nus
com o óleo das rosas vermelhas do bosque.
Revelar-vos-ei os caminhos secretos das florestas,
e as grutas encantadas, abrigos de delicados morcegos.
Percorreremos rios que escondem serpentes aladas,
e mares que guardam gigantes cavalos-marinhos.
Sobre eles, seguiremos ao encontro de translúcidas medusas.
E comeremos verdes algas e beberemos o roxo vinho musgal.
Submersas, as conchas nos servirão de taças.
Saudaremos felizes os Nagas ressuscitados.
A viagem parecerá longa. Mas... não, nada demora.
Encantados, eis que renasceremos do fundo do mar!
De volta, encontraremos uma frágil criança chorando,
débil folha seca, pendurada nos braços da mãe faminta.
E na terra rachada, um velho sedento sugará o derradeiro cacto.
Nós, renascidos, seremos a chuva, o leite, o mel.
E juntos, despertos, choraremos a vida e a morte.
Até a última gota das nossas salgadas lágrimas.
Kátia Drummond.
Em primavera portuguesa. Monte Estoril, 2005.
domingo, 4 de fevereiro de 2007
POEMA INÚTIL
Não sei o que fazer para chover-te as terras.
Nem sei, ao menos, amparar-te as dores.
Eu bem quisera serenar em tuas serras
e orvalhar-te inteiramente os vales.
Mas… a lágrima que tenho é pouca.
O meu coração nem sangra mais.
Se as minhas mãos fossem pétalas,
nelas eu guardaria para ti os doces rios.
Se fossem conchas, por ti guardaria os mares.
Mas… as minhas mãos são frágeis
e meus dedos enrijecidos e débeis.
Trêmulas, as minhas mãos só sabem versejar!
Mãos inúteis, essas minhas, que nunca souberam arar.
Kátia Drummond.
Em primavera portuguesa. Monte Estoril, 2005.
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