domingo, 29 de janeiro de 2012


AINDA… E SEMPRE

Entre a terra e o mar,
espero-te no cais...
Mesmo sabendo
que não voltarás jamais.


Kátia Drummond

Foto: Ben Horton/National Geographic Society/Corbis

sábado, 28 de janeiro de 2012


NO CEGO

Um dia após o outro… E lá vamos nós.
Animados, sonhadores, vivazes construtores de ilusões.
Sensíveis às vitórias. Absolutamente desprevenidos face às eminentes derrotas.
Como se a vida fosse sempre bela.
Como se a Terra fosse um lugar encantado. A nossa Passárgada!
Como se nós fôssemos os únicos seres vivos neste imenso planeta.
Tão envolvidos estamos com as nossas vidas, tão embaraçados estamos
no torvelinho que representa os nossos conturbados contextos,
que não vislumbramos senão a nós mesmos.
Colocamo-nos fora da teia que antes houvera sido tecida pela união
de dois corpos, de onde brotaram as nossas condicionadas vidas.
Ora sabor de mel. Ora sabor de fel.
Às vezes, vorazes aranhas. Outras, débeis insetos.
O doce-amargo-azedo da casca do limão, que trava na boca e
que nos faz cuspir. Quando não, vomitar a própria alma em sangue.
Surge a invisível linha do horizonte a nos separar do outro lado. O lado de lá.
E a deixar-nos apenas inebriados com as belezas do alvorecer e do por do sol.
Lá, bem do outro lado do muro, onde jamais dormiremos juntos,
paira a margem que, porventura, jamais alcançaremos.
Se não temos naus, se não temos cais, resta-nos saber nadar em vão...
Se porventura alcançarmos a outra margem, precisaremos desatar 
o nó cego que amarra a âncora que nos prende no fundo do mar.
Apesar das borbulhantes ondas.
Eis-nos, pois… Nós, os audazes viventes, sobreviventes dos nossos sonhos.
Em dias gloriosos, felizes. Em dias inglórios, amargurados.
Na soma, digo, em suma, nós somos sós. Ou sós somos nós?
Buscamos os cúmplices, com quem haveremos de erguer a tribo.
E defendemos a tribo, como quem salva, em grupo, a própria pele.
Até que sucumbimos pisoteados pela insana multidão.
Engolidos, inexoravelmente, pelo tempo voraz.
Ainda assim, celebramos a vida, como quem coloca coroas de flores
no próprio caixão, e acende velas e incensos.
Mas… Surpreendentemente, o defunto ressuscita!
E todos nós, covardes, dele fugimos de medo.
E, de medo em medo, a cada amanhecer a vida continua 
a processar a sua própria morte contínua… Imutavelmente.
A reger naturalmente a sua própria marcha fúnebre.
A marcha que um dia a alma-gênio de Bethoven anunciou.
Até virarmos, cada um de nós, o monstruoso e indesejado cadáver.
Alimento das formigas, das minhocas, dos vermes. Alimento do alimento.
Sem a alma de nós mesmos, mortos vivos que todos somos.
Aquela alma que, desde a tenra infância, o espelho sempre nos mostrou.
E que nós, ávidos de viver, teimosa e cegamente, nunca víamos.
Ou fingíamos não ver.
Ah… Misteriosa e ilusória vida!...
Como é difícil quebrar-lhe as correntes, desatar-lhe os nós!

Kátia Drummond

Foto: Matthias Kulka/Corbis


terça-feira, 24 de janeiro de 2012



INSEPARATIVIDADE

Perder-te foi a condição dolente,
para ter-te comigo vivamente.

Além do corpo morto, no caixão.
Além das cinzas guardadas em vão…

Perder-te foi a condição vivente,
para ter-te comigo onipresente.

Sem portos de chegadas e partidas.
Sem lágrimas de adeus, sem despedidas.

Perder-te foi a condição silente,
para ter-te comigo onisciente.

Em zona nunca antes visitada,
onde apenas os anjos têm morada.

Perder-te foi a condição premente,
para ter-te comigo sutilmente.

Bem onde paira o Ser primordial.
O Uno sem matéria corporal.

Perder-te foi a condição latente,
para ter-te comigo eternamente.


Kátia Drummond


Foto: Marc Wuchner/Corbis.jpg

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

AS TÁBUAS DO TEU CAIXÃO

Menino, eu te peço um beijo,
daqueles de antigamente.
De quando beijos e abraços
encantavam toda a gente!

Menino, eu te peço água,
da fonte mais cristalina.
De quando eu banhava a alma,
nos meus tempos de menina.

Menino, eu guardei meus sonhos,
aqueles que ninguém via,
nos lugares mais secretos...
Que só você conhecia.

Menino, eu aqui tão longe,
entre tantas solidões,
vivo a esconder meus sofreres
nos sótãos e nos porões.

Menino, o que me resta,
depois da vil despedida,
é achar que a tua morte
não levou a tua vida!

E que o meu amor materno,
depois de tanta aflição,
constrói o meu leito eterno,
com as tábuas do teu caixão.


Kátia Drummond

Foto: Kátia Drummond – "Suécia Outonal".

sábado, 7 de janeiro de 2012

DOS TEMPOS DOS GIRASSÓIS

Você ainda se lembra do tempo dos girassóis?
Ah… como eram lindos os nossos dourados girassóis!

E o nosso carcará, exímio comedor de melancias?
Guloso, ele até esquecia que era um ser carnívoro!

Lembra do nosso bem-te-vi, que apelidamos de Piupiu?
De tão dengoso, ele não queria voltar para o ninho.

E do filhotinho de saguis, do qual cuidamos, lembra?
Seus pais vieram, em bando, amorosamente buscá-lo.

Lembra das borboletas monarcas de asas diáfanas?
Elas nunca mais pousaram em meus cabelos…

E do nosso gatinho preto que amava saltar nas árvores?
Ele pensava que era um esperto e lépido macaquinho!

Lembra do nosso especial e mimoso morceguinho?
Ele vivia voando pela casa, e sempre dormia no meu bolso.

E do nosso sazonal e fiel falco peregrinus? Como esquecer?
A cada outonal inverno ele invadia os nossos corações!

Lembra do nosso pequenino e elegante cavalo-marinho?
Ele continua belo e vigilante, protegendo o nosso templo.

E a nossa saltitante rãzinha, noviça e verde como a relva?
Agora ela vive sobre um buda, banhando-se na cascatinha.

Lembra do peixinho, aquele comprado em um saco plástico?
A água secou, o saco murchou, o peixinho morreu.

E a nossa cigarra outonal, que não parava de cantar?
Ela desapareceu… Até parece que toda a natureza está morta!

Lembra dos nossos fugidios cães de guarda… Lembra?
Eles não guardavam nada, mas amavam brincar de esconder!

E dos nossos domingueiros passeios, em família, no ZOO?
Ai como desejávamos soltar daquelas grades todos os animais!

Lembra da palmeirinha que achamos, moribunda, em nossa rua?
Ela já não é tão alegre nem tão viçosa como antes.

E da nossa curiosa e engraçada "lenda do caminhão"?
Continuo perambulando pelas ruas, na beirada dos passeios.

Lembra daquelas nossas idas e vindas, das tantas voltas por aí?
Tudo porque ficávamos conversando e perdíamos os caminhos…

E o picolé que só existia na Pituba, pertinho de nossa casa?
O mais natural, o mais gostoso, o mais barato. Só você mesmo!

Lembra de quando madrugávamos para escrever nossos poemas?
As madrugadas ainda continuam… Mas os nossos versos não.

E as nossas caminhadas pela praia, sob luminosos raios de sol?
Ainda hoje vejo os nosso passos desenhados na areia…

E das festas, quando você cantava fazendo caras e bocas?
Ainda ouço você a dedilhar, enlevado, o seu contrabaixo.

Às vezes, nós descíamos a rua para comer acarajé. Lembra?
Nunca entendi porque você escolhia o insosso bolinho-de-estudante.

Sabe as nossas úmidas e deliciosas tortas de chocolate?
Desde que você daqui partiu, que eu perdi a nossa única receita.

Ah… e o magnífico pudim de tapioca feito com leite-de-coco?
Restou apenas uma sensação de suave sabor em minha boca.

Lembra a linda medalha, com vitral azulado, presente de aniversário?
Inexplicavelmente, quebrou bem na palma da minha mão!

Lembra da nossa, digo, da sua última morada, seu esquife?
Quase que eu deito ao seu lado e, entre as flores, sigo com você…

Lembra que juramos amor eterno e que nunca nos separaríamos?
O meu amor de mãe ainda resiste…  Até que o sol se apague.

E quando o sol se apagar, bem sei, estarei ao teu lado novamente.
Sem mais viver de vãs recordações. Sem mais morrer de saudades.


Kátia Drummond

Foto: Ashley Cooper/Corbis

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012


É DA MINHA NATUREZA

Conversar com os passarinhos.
É da minha natureza.

Acarinhar morceguinhos.
É da minha natureza.

Vislumbrar-te no falcão.
É da minha natureza.

Guardar-te em meu coração.
É da minha natureza.

Viver a plena alquimia.
É da minha natureza.

Querer ter-te todo dia.
É da minha natureza.

Levar a vida a sonhar.
É da minha natureza.

Não cansar de te esperar.
É da minha natureza.

Fazer do adeus saudade.
É da minha natureza.

Transcender a eternidade.
É da minha natureza.

Ser as cinzas do teu ser.
É da minha natureza.

Perpetuar teu viver.
É da minha natureza.

Transformar ausência em dor.
É da minha natureza.

Engravidar-me de amor.
É da minha natureza.


Kátia Drummond




Foto: Por Sávio Drummond. 

O nosso "piu piu", encontrado caído na rua.
Com ele, aprendemos a conversar com os passarinhos...

domingo, 1 de janeiro de 2012


ALÉM DE MIM, ALÉM DE NÓS...

Declaração de amor ao nosso eterno amor...

Não é além de nós que sempre nos amamos.
Sequer além da terra, nem além do mar.
O nosso eterno amor, a pátria dos amantes,
existe a qualquer hora, em todo lugar.

O nosso amor flutua nas asas do vento,
qual pétalas de flores perfumando o ar…
E como a vã paixão, algema dos que amam,
o nosso amor nos prende sem nos sufocar.

Assim é o nosso amor… Inexplicavelmente!
Sem corpo e sem sexo. Matéria ao reverso.
E, por tanta alquimia, chego imaginar…
Que ele é pura centelha. Soma do universo!

Kátia Drummond

Foto: Yasuko Aoki/Amanaimages/Corbis