sábado, 28 de janeiro de 2012


NO CEGO

Um dia após o outro… E lá vamos nós.
Animados, sonhadores, vivazes construtores de ilusões.
Sensíveis às vitórias. Absolutamente desprevenidos face às eminentes derrotas.
Como se a vida fosse sempre bela.
Como se a Terra fosse um lugar encantado. A nossa Passárgada!
Como se nós fôssemos os únicos seres vivos neste imenso planeta.
Tão envolvidos estamos com as nossas vidas, tão embaraçados estamos
no torvelinho que representa os nossos conturbados contextos,
que não vislumbramos senão a nós mesmos.
Colocamo-nos fora da teia que antes houvera sido tecida pela união
de dois corpos, de onde brotaram as nossas condicionadas vidas.
Ora sabor de mel. Ora sabor de fel.
Às vezes, vorazes aranhas. Outras, débeis insetos.
O doce-amargo-azedo da casca do limão, que trava na boca e
que nos faz cuspir. Quando não, vomitar a própria alma em sangue.
Surge a invisível linha do horizonte a nos separar do outro lado. O lado de lá.
E a deixar-nos apenas inebriados com as belezas do alvorecer e do por do sol.
Lá, bem do outro lado do muro, onde jamais dormiremos juntos,
paira a margem que, porventura, jamais alcançaremos.
Se não temos naus, se não temos cais, resta-nos saber nadar em vão...
Se porventura alcançarmos a outra margem, precisaremos desatar 
o nó cego que amarra a âncora que nos prende no fundo do mar.
Apesar das borbulhantes ondas.
Eis-nos, pois… Nós, os audazes viventes, sobreviventes dos nossos sonhos.
Em dias gloriosos, felizes. Em dias inglórios, amargurados.
Na soma, digo, em suma, nós somos sós. Ou sós somos nós?
Buscamos os cúmplices, com quem haveremos de erguer a tribo.
E defendemos a tribo, como quem salva, em grupo, a própria pele.
Até que sucumbimos pisoteados pela insana multidão.
Engolidos, inexoravelmente, pelo tempo voraz.
Ainda assim, celebramos a vida, como quem coloca coroas de flores
no próprio caixão, e acende velas e incensos.
Mas… Surpreendentemente, o defunto ressuscita!
E todos nós, covardes, dele fugimos de medo.
E, de medo em medo, a cada amanhecer a vida continua 
a processar a sua própria morte contínua… Imutavelmente.
A reger naturalmente a sua própria marcha fúnebre.
A marcha que um dia a alma-gênio de Bethoven anunciou.
Até virarmos, cada um de nós, o monstruoso e indesejado cadáver.
Alimento das formigas, das minhocas, dos vermes. Alimento do alimento.
Sem a alma de nós mesmos, mortos vivos que todos somos.
Aquela alma que, desde a tenra infância, o espelho sempre nos mostrou.
E que nós, ávidos de viver, teimosa e cegamente, nunca víamos.
Ou fingíamos não ver.
Ah… Misteriosa e ilusória vida!...
Como é difícil quebrar-lhe as correntes, desatar-lhe os nós!

Kátia Drummond

Foto: Matthias Kulka/Corbis


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