NO PORÃO DAS NOSSAS MENTES
“Obrigado, deuses! Desculpe, "Deus"...
É que a vida continua e você é só um nome.
(Sávio Drummond)
A morte não existe apenas por estar nos livros,
nem nos sonhos. Sequer nos nossos medos.
A morte real é bem diferente. É crua, nua, drástica!
É um monstro predestinado, invisível, inexorável.
Um carrasco cruel e sádico. Usurpador de almas!
Que engole a vida dos que se foram,
e, ainda pior, destrói a vida dos que ficam...
Vidas anônimas, restos desarmados de seres,
derrotados prisioneiros de tudo e de nada.
A orar, nos seus terços, as suas próprias solidões.
Viciados que ficam todos em saudades, como eu.
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
Hoje, tão diferente daquele ser celestial e protetor.
Distante do arcanjo guardador dos meus primeiros sopros de fé.
O dono de tudo e de todos, desde a nossa origem ao nosso fim.
Capaz de atirar o meu viver às traças. Quando não, no fosso.
E imaginar que eu reservava, só para você, bem ao meu lado,
o melhor lugar naquele antigo banco da capela da escola!
Lembrar que eu era o anjinho mais fervoroso das suas procissões!
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
O que você quer de mim, invisível senhor da eternidade?
Tirano a chicotear-me neste circo dos horrores...
E a sugar, sedento, o sangue dos meus delírios.
A deixar-me seminua, coberta de peles em trapos.
Carne morta-viva, onde desbotam alegrias e esperanças!
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
Eu, esta inútil e tênue sombra do que me resta,
busco alumbrar-me o breu que me cega e sufoca.
Quero atravessar nuvens, alcançar luzes, navegar céus…
Quebraste-me as asas. Roubaste-me os voos.
Esgotaste-me as derradeiras lágrimas. Secaste-me a fonte.
Meu espelho revela-me o corpo exausto, murcho, esquálido.
E ninguém, nem você, será capaz de lamber minhas feridas!
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
Vamos fazer um trato, oh invencível senhor do destino...
Devolva-me meu filho, e eu prometo-lhe, renovada, a minha fé.
O que restou de mim, confesso, eu mesma já nem sei.
Mas… No fundo do poço da minha alma ainda raiam flamas,
últimos lampejos vivos dos meus essenciais encantos de infante.
Do meu suave alvorecer que, em luto, ainda suspira e clama.
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
E como não me pertence o dom de renascer das cinzas,
procuro um bom e racional motivo para não mais chorar.
Busco, nas entranhas do universo, a célula-mãe primordial.
Centelha divina, fonte das minhas vicejantes energias.
E dela, alimento-me. E com ela prossigo, cambaleante…
Ao enconto do organismo preexistente do maternal amor.
Ai deus meu, ai deus! Quem é você, afinal?
Apenas um nome no porão das nossas mentes.
Ou um impassível pai, desalmado e sem coração?
Kátia Drummond
Foto: Thom Lang / Corbis