sábado, 29 de agosto de 2009


PARIS EM MIM

Cantei Paris em plena Discophage.
Rue des Écoles sempre à minha espera.
Li Baudelaire, visitei poetas.
Vendi flores de papel, sonhos, quimeras.
Desvendei becos, desnudei ruelas.
Todas as suas portas me eram abertas.
Todas as suas ruas me eram belas!
Troquei de gestos, como fazem as damas.
Brilhei nas noites, mais que as atrizes.
Troquei de palcos, delirei na fama.
Adormeci nas luas das marquises.
Amanheci vagando nos jardins.
Perambulei nas praças, avenidas.
Vivi amores. Fiz homens felizes.
Vi lágrimas virarem cicatrizes.
Ouvi o badalar da Notre-Dame.
Roguei por Deus em todas as matrizes.
Nos bosques, caminhei nas folhas secas.
Colhi sereno, adormeci na grama.
Pousei nas gares, segui nos metrôs.
Fugi de mim pra não cair na lama.
Quantas e quantas madrugadas nuas.
Tantas e tantas noites mal dormidas.
Fantasmas passeando nos fortins.
E eu testemunhando outras vidas.

Fui pastora nos campos de Avignon.
Amiga de Zola e de Voltaire.
Lutei pela Tombée de la Bastille.
DaBelle Époque, fui la jeunne fille.
L’amante passionée de Baudelaire.
Andei Paris em muitos frios invernos.
Amei Paris em seus verões banais.
Colhi Paris em belas primaveras.
Sonhei Paris nas noites outonais.
Domei Paris como quem doma as feras.
Paris, pra mim, é uma folgazã.
Uma mulher da vida, bem amada.
Uma caixa onde escondo meus segredos.
Um pomar proibido, uma maçã.
Um útero onde ainda estou guardada.
Quero viver Paris todos os tempos.
Amá-la em meus delírios, com fartura.
Lavar minh’alma nas margens do Sena.
Embriagar-me plena de ternura.

Do que eu fui em Paris, resta-me o sonho.
E os versos dos poemas que componho.
E muito mais do que desejo. Ainda.
Eu quero é possuí-la, como poucos.
Eu quero engravidá-la, como os loucos.
Em meu sangue, meu suor, minhas entranhas.
Paris, pra mim, é a minha pátria estranha.
É a saudade da ventura finda.
É a lágrima distante que me banha.
Paris, em mim, é possuir-me ainda.


Kátia Drummond

Arte: Walter Bibikow

sexta-feira, 21 de agosto de 2009


ALMAGAMADAS ALMAS NUAS

Não nos deixemos sós, os dois, as duas.
Nossas amalgamadas almas nuas,
entrelaçaram nosso ir e vir.
Sem nós, não saberíamos seguir.
Qual alma gêmea, qual, encontraríamos
tão igualzinha a mim, tão igualzinha a ti?

Se juntos habitamos o mesmo templo,
se percorremos sempre a mesma estrada,
Se adormecemos sob os mesmos sonhos
e tatuamos os mesmos lençóis.
Se juntos somos tudo, somos nada
e se ardemos sob tantos sóis.
Se as nossas vidas vivem entrelaçadas,
se já nos entregamos um ao outro,
se não sabemos desatar os nós?

O que fazer então os dois sozinhos,
perdidos animais, fora do ninho,
qual de nós dois encontraria a porta,
se há tanto tempo essa cumplicidade
nos transformou em natureza morta?


Kátia Drummond.

Ilustração: Paolo Farinati, 1890. The Bettmann Archive.

domingo, 16 de agosto de 2009


EXÉRCITO DE ANJOS

Pequenos, barrigudinhos
Olhares tristes, mansinhos
Sorrisos amarelados
Perambulam nas esquinas
Frágeis como passarinhos
Os meninos e as meninas
Filhos das filhas das ruas
Donos dos bancos das praças
Pés-de-vento, pés descalços
Desamados, destemidos.
Perseguem-lhes os cães de raça.

Vira-latas das esquinas
Frágeis aves de rapina
Armados de pedra e pau
Os meninos e as meninas
Pastores das alvoradas
Atravessam madrugadas
Sempre em estado de graça
Adormecem ao relento
Parecem donos do tempo.
Perseguem-lhes os cães de caça.

Borboletas sob o sol
Vaga-lumes sob a lua
Sem presente e sem porvir
Quebram cercas, pulam muros
Sem saber pra onde ir
Os meninos e as meninas
Entre ódios e branduras
Guerrilheiros de almas puras
Maltrapilhos, quase nus
Têm um coração que clama
Uma alma que reclama
São todos anjos da terra.
Essas crianças de luz!

Katia Drummond
Obra: Exército de Anjos



Fotógrafo: Gideon Mendel

RASTROS

[A Charles Baudelaire. "Em memória".]

Eu sou devota das palavras sãs.
Tenho a missão de transformar o mundo.
De desmistificar as causas vãs.
De dialetizar as calmarias.
De destoar dos dogmas, das leis.
De discordar e de romper de vez.
Carrego um lado torto, outro corcundo.
Depende das pedreiras do caminho.
Das foices, dos martelos, das enxadas.
De tudo o que discordo e desalinho.

Num corpo embaraçado em finas teias,
Trago uma alma que pensa e delira.
Força inquieta, imprevista, insana.
Mas delicada como o som da lira.
Um coração ardente, sempre em chama.
O sangue que percorre as minhas veias,
Aos meus sentidos, vai virando cobras
Que serpenteiam, tortuosamente,
Tal qual um rio fecundo em solo quente.
Como um pincel traçando novas obras.

As minhas mãos singelas, palmo a palmo,
Escavam firmemente a terra bruta.
Enquanto os meus pés, a cada passo,
Cravam no barro o sangue dessa luta.
Eu tenho por tarefa, ser tenaz.
Eu tenho por medida, ser ligeira.
Meu tempo urge. Não olho pra trás.
Se a vida é uma aventura passageira,
Por que chorar, se o passado não volta,
E se a morte é a flecha mais certeira?

O meu espelho nunca me reflete.
Mostra as doçuras e as brutalidades
De um mundo atroz, traçado a canivete.
Mostra as dores dos filhos de Zimbabwe,
Suazilândia, Lesoto, Botswana.
O mundo que maltrata e que engana.
Que cria a infância e que lhes rouba a alma.
Que trai e corta fundo, com a navalha,
A mãe que, em vão, o filho morto acalma.
Ao tempo em que lhe serve de mortalha.

Tenho uma cara que pensa e constrói.
E outra que destrói, face aos perigos.
Se brinco, sou a taça do herói.
Se penso, sou a arma dos bandidos.
Sou as meninas, as putas das ruas.
Os corações humanos travestidos.
Os pivetes com armas de brinquedo.
Os favelados sem o samba-enredo.
Os mortos-vivos, trastes desnutridos.
Os cadáveres das guerras invisíveis.
Os budas tibetanos destruídos.

Sou o "Teatrofantasma" de Ariel.
De Macalé, a voz rouca e fiel.
De Mautner, o verso destroçado.
De Cazuza, o amor estilhaçado.
De Brecht eu sou o derradeiro ato.
O último suspiro de Torquato.
Do Raul Seixas sou o desatino.
Sou nau perdida. Nave sem destino.
O lancinante grito não contido.
O diabólico ecoar do sino.
Eu nada quero. E tudo tenho tido.

De noite, exausta, eu deito e descanso.
Adormecida, sonho que estou viva.
Na madrugada, eu acordo e avanço.
Acorrentada. Escrava. Ave cativa.
De dia, ao despertar, ouso e alcanço.
Desato os nós, desembaraço a teia.
A liberdade abre as suas asas!
O universo inteiro se encandeia.
Bandeiras rasgam-se nos velhos mastros.
E enquanto a vida tece uma outra teia,
Eu sigo em frente deixando meus rastros.


Kátia Drummond
Sintra, Portugal.


Title: Portrait of Charles Baudelaire
Artist: Etienne Carjat
Date: 1861-1862

quarta-feira, 5 de agosto de 2009


DESPEDIDA

(Ao amigo Carlos Karr. Em memória.)

Não há adeus em nossa despedida.
Nem piedade. Nem desolação.
Pois os amigos nunca se separam.
Apenas, vão….

E deixam no seu rastro a alegria.
Sem saudade. Sem consumação.
Pois os amigos nunca se acabam.
Apenas, são.


Kátia Drummond
The Travelling Poet


Imagem: Patrick Norman