domingo, 15 de abril de 2007
QUANTO MAIS ENVELHEÇO, MAIS VERSOS TEÇO.
Desde a memória familiar de Castro Alves, cujo retrato desbotava na parede da casa da minha vó, cresci e sempre vivi num mundo especial, de pessoas sensíveis, filósofos, escritores. Nossa casa era o templo dos artistas. Um estado de encantamento incomum acercava-me cotidianamente. A luz roxa da vela boiando no óleo, e a iluminar desde a imagem do "Coração de Jesus" até meu próprio coração. Meu ensimesmado vô tocando um desfinado bandolim. Meus tios escritores, ora vibrantes, ora silenciosos, dedilhando palavras em suas pesadas e ruidosas máquinas datilográficas (elas, as máquinas, exerciam um estranho poder sobre mim!). Minha mãe, solenemente, executando no piano a "Marcha Fúnebre" de Beethoven. Meu pai, sorriso nos olhos, tocando pandeiro e declamando:
– Seu moço, depois dessas terras, onde é que vai dar?
– Adispois dessas terra Doutô, adispois dessas terra é sempre Brasi.
– E depois do Brasil, seu moço? Depois do Brasil, tem o quê?
– Adispois do Brasi, seu Doutô? Adispois do Brasi… num tem nada!
E era o galo a anunciar o sol. O sino da igreja a badalar a lua. A borboleta, o caracol, a lesminha, a formiga, o besouro, a mosca, a abelhinha, a viuvinha, o gafanhoto. Como era lindo o meu jardim! A lépida lagartixa a caçar mosquitinhos, os passarinhos gorjeando nos luminosos girassóis, os estranhos morceguinhos [vi]vendo o mundo ao avesso, o "caguinho" escondidinho atrás do piano, o elegante cavalo-marinho, a esvoaçante medusa bailarina. Um homenzinho de boné vermelho morava na parede do meu quarto e todas as noites sorria para mim. Uma fadinha dourada tecia os meus sonhos. E a vó materna, completamente paralítica, dava de contar estórias encantadas:
"Capineiro do meu pai
Não me cortes o cabelo
Que a madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho roubou."
E eu, com meus cabelos de milho e meu corpo de algodão, começava a ouvi-las (e eram muitas) em sorrisos e, ao final, sempre acabava por disfarçar as lágrimas. Criança também sabe disfarçar!
Permanentemente renascia entre os livros escolares, os contos de fadas e o piano. Filha de pianista clássica, iniciei no instrumento desde cedo. De tanto ouvir minha mãe tocar, apaixonei-me por Chopin, Mozart, Scarlat, Vivaldi e Bach. Passei a sonhá-los por noites a fio. E vim a estudá-los. E acabei por interpretá-los. Virei concertista. Virei eles. Minha vida voou além de mim.
Mas... curiosamente, nunca perdia de vista um estranho movimento que vivificava nossa casa. Que atraía entusiasmados “camaradas”, vindos de longe. Um mundo "mágico", habitado por pessoas idosas, pessoas maduras e alguns jovens, todos eles “revolucionários”. Belas pessoas comunistas, a quem observava embevecida, e a quem aprendi docemente a amar. Idealistas, falavam-me de igualdade, liberdade e direitos humanos, como se eu fosse gente grande. Eles incendiaram meu pequeno coração. Alumiaram minha infância.
Desde a tenra idade, ouvia meu pai a dizer que gente nasceu para ser feliz. Que “a religião é o ópio do povo". Que existia um lugar onde ninguém passava fome. Apaixonei-me por esse lugar fantástico, embora nem conhecesse a fome. Foi amor à primeira vista, confesso. Construí ali o meu jardim do Éden. E nesse meu mundo imaginário, meu paraíso terreal, crianças cantavam e brincavam de roda. Os pais e as mães, os vôs e as vós, eram todos alegres. Ali, no meu jardim fantástico, a vida sempre sorria feliz.
Mas… um dia (triste dia!), com arma na mão, a polícia "heroicamente" invadiu nossa casa. “Casa de comunistas!”, “Casa de gente que mata e que devora criancinhas!”. E aquela polícia levou meu pai. Levou meus tios. Levou meus amigos. Levou minhas prendas. Ficamos minha mãe, minha irmã e eu. A polícia desarrumou salas e quartos, derrubou meus brinquedos, quebrou minhas bonecas, destruiu meu piano, levou o pandeiro de meu pai. Foi assim que vi e que senti, pela primeira vez, o gosto salgado da vida a escorrer, em lágrimas pungentes, na pálida face da minha mãe. Uma bala atravessou meu sonho! Amarguei a minha primeira dor. Pedi asilo ao meu coração. Daí em diante, em meio a lapsos de felicidade, foi uma dor atrás da outra. Eu vi que os comunistas da minha casa tinham razão. A minha poesia sangrou em mim. E virou comunista também!
Veio o ruído do tempo. O murmúrio rompeu o silêncio. Um pássaro cinzento pousou no meu ombro. Pedi asilo ao mundo. Enlaçadas no mesmo corpo, a poesia e eu, criamos asas. Quanta lindeza tamanha! Quanta tristeza medonha! Agora, entre o imaginário e a realidade concreta, moto-contínuo, sou eu a dizer aos meus filhos e às minhas netinhas (eles também são tudo arte, tudo artista!) que esse mundo ainda vai ser bonito, justo, humano. Sem discriminações, sem miséria e sem fome. Sem violência e sem dor. E que todas as pessoas serão felizes. Como nos contos da carochinha, como nas infâncias perdidas, como o que temos de melhor em nossos corações.
E, neste mundo em movimento, enquanto houver essa tristeza pungente da mãe desleitada e esquálida, enquanto a lágrima do pai aflito cair sobre o rosto esquelético do filho morto pela fome, enquanto o sorriso pálido e suplicante brilhar nos olhos esperançosos das crianças, enquanto a desesperança escorrer nos corpos desiludidos dos idosos, haverá de borbulhar em mim a poesia. A poesia que orvalha a natureza. A poesia que enternece os corações. A poesia que beija e abraça. A poesia que sonha e realiza. A poesia que brada nos porões dos navios negreiros. A poesia que pensa e transforma. A poesia que irrompe e pula cercas. A poesia que sangra e segue a marcha. Porque, venturosamente, a vida me acontece. Porque é preciso.
Kátia Drummond
Sintra, Portugal.
Imagem: Lili K.
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2 comentários:
Puta merda, viu? Impossível chegar ao final desse texto sem sentir os olhos marejando e uma lágrima escapar...acho que gosto desse poema mais que todos juntos..rs! Esse e Requiém para um amor são os que fazem a respiração e a alma calarem durante os completos minutos necessários para a leitura!
Sim, Kátia, É preciso poesia, e nada como uma poesia precisa quanto a sua, que me orgulha e faz recordar alguns ótimos momentos da minha infância.
Beijos, prima poeta
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