domingo, 12 de junho de 2011


MIRAGEM

Se eu soubesse que o amor matava a gente,
eu matava ele primeiro, pra ele não me matar.
(Anastácia)

Como o último poeta solitário,
em meio aos raros seres peregrinos,
tracei no adeus um novo itinerário,
contrariando sendas e destinos.

No breu da morte, a tatear a vida,
nem sei se ainda vivo ou sou miragem.
Presa que estou na engrenagem antiga.
Nas lanças afiadas da ferragem.

Já nem sei se existo ou se sou sonho.
Derivo na fronteira delicada
que faz todo sujeito ser alguém
e a plenitude transformar-se em nada.

Já não sei se sou prece ou sou escárnio.
Se eu sou o diabo ou se eu sou deus.
Se escuto o badalar do campanário
ou a fé solitária dos ateus.

Tudo que sei, ou que eu acho que sei,
é que a cada dia, a cada aurora,
como uma mãe a amamentar a cria,
alimento-me a alma que ainda chora.

Ao tempo em que fecundo a fantasia
que vira o Universo pelo avesso,
viro criança, cresço, engravido...
E num parto sem dor volto ao começo.


Katia Drummond
Em outono brasileiro. SSA BA 2011

Imagem:  Vlad Gerasimov