terça-feira, 16 de março de 2010

ESCRAVA DA POESIA

 li e reli o teu livro.

presa nas amarras dos teus versos, flagrei-me em êxtase!
entre ires e vires, entreguei-me ao borbulhar do teu sangue.
transmutei, em mim, fel em mel. sol em lua. trigo em pão.
percebi, no reflexo da tua iris, que o teu poeta sou eu.

li e reli o teu livro.

versos que desenterram mistérios dos porões da alma.
portões de ferro escancarados ao divinecer…
faca afiada a cortar tecidos. arranhar peles. arrancar pelos.
fogo em lenha. aguaceiro a inundar a imensidão.

li e reli o teu livro.

solidões beirando o cais à espera do navio que não virá.
multidões boquiabertas aparando gotas serenais.
frescuras madrugais intermináveis. vãs...
raios de luz alumiando a escuridão. solstícios.

li e reli o teu livro.

nele, em ti, por vezes a minha alma adormeceu.
estática. a ouvir o ruído agudo das palavras. jamais vãs.
sílabas tecidas fio a fio. e em cada ponta, um nó.
vislumbrei estreitas ruelas. dobrei delas cada esquina.

li e reli o teu livro.

dei de achar um anjo com três asas. voejei…
no céu, apercebi-me da agudez dos teus gritos.
tentei socorrer-te sofregamente. estendi a mão. em vão.
apurei… e mergulhei nos teus sombrios sussurros. ecos…

li e reli o teu livro.

ao longe, sorrisos torcidos. ácidas gargalhadas.
desci nas costas do vento. caí suavemente sobre ti.
provei da acidez do teu suor. lambi o doce do teu humus.
alcancei frestas onde desvendei segredos.

li e reli o teu livro.

é assim o meu ler… demorado, insistente, curioso.
por vezes, distraído. quando não, invasivo.
serenamente ávido de existir do outro lado.
o meu ler é viciado em pular cercas e muros.

li e reli o teu livro.

onde todas as páginas cheiram a campos de alfazemas.
e salivam apurados gostos de extrato de gengibre.
folhas por onde escorrem o fresco sumo das mangabas.
ai como eu amo o cantar das cigarras nas mangabeiras!

li e reli o teu livro.

nele, caminhei léguas e léguas sem fim a versejar.
semeei sonhos. plantei quimeras. traí amores.
até sucumbir vencida. alma dormente e amordaçada.
condenada à escravidão da tua poesia em mim.

Kátia Drummond
The travelling poet

Art by Cynthia Hart



quarta-feira, 10 de março de 2010


Insensato Coração (II)

Coração, você de novo!
Por que tanto entristecer?
Na vida nada é perfeito.
Todo amor tem seu defeito.
Não vale a pena sofrer.

Coração, deixe de manha.
De que adianta fingir?
Dê-me um pouco de repouso.
Veja se muda de pouso
e encontra um novo devir.

Como pétalas ao vento
ou ondas a ir e vir,
na roda do sentimento
toda dor tem seu momento.
Coração, volte a sorrir!


Kátia Drummond
The travelling poet

Art doll by Lada Konstantinova