sábado, 25 de agosto de 2007



ESPANTALHO

A saudade engoliu-me!

Vaga e obscura saudade abissal...
Meu coração, em neve, congelou-se.
Tudo é nada no passar da vida.

Quando eu nasci, era um anjo.
Hoje, um delicado demônio de luz.

Ah... meu Deus... como és cruel!
Primeiro, iludes. Depois, abandonas!

Meus jardins viraram prédios.
Meu piano, cinzas de carvão.
Quero de volta as velhas partituras.
Foi nelas que enterrei meus sonhos.

Chopin, velho amigo de infância,
traz-me de volta os nossos Noturnos!
Nas suaves asas dos teus acordes,
devolve-me a alma lírica que perdi.
Traz-me, em Sonatas, a doce mãe.
Minha única, fiel e fervorosa platéia.

Ah... gélida, feroz e incontrolável saudade...
Invisível e voraz óxido corrosivo.
Silenciosa e devastadora ferrugem.
Afiado e incomplacente fio de navalha.

A saudade engoliu-me!

Agora, vestida de espantalho,
sofregamente tento assombrar o tempo.

O inexorável tempo que me resta!


Kátia Drummond
Em verão português. Sintra, 2007



Foto: James Nelson
Ah... meus belos e apaixonantes corvos suecos!